Marina Silva: concorrer à Câmara é fazer frente à “terra arrasada” deixada por Bolsonaro

Aos 64 anos, Marina Silva se vê mais uma vez diante de um chamado para concorrer a um cargo legislativo. A ex-ministra do Meio Ambiente já foi eleita vereadora de Rio Branco, cidade onde nasceu, deputada estadual e senadora duas vezes pelo Acre. Em 2022, o desafio pode ter outro nome, Câmara dos Deputados, e também outro colégio eleitoral, São Paulo, em vez de seu estado de origem. 
Marina, que já concorreu três vezes à presidência, diz que se candidatar novamente ao Congresso Nacional não estava “em seu horizonte”. Mas diante da “guerra contra tudo que é de interesse estratégico do Brasil” promovida pelo presidente Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos, ela agora reconsidera. “Derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo é um ato de legítima defesa”, “um imperativo ético”, afirma. “Quando penso na questão de como encarar o desafio que está posto, de retornar para dar essa contribuição, esse não é um debate que está sendo feito só comigo; inclusive, venho estimulado esse debate para outras pessoas, e aí, de certa forma, ele foi devolvido para mim”, conta em entrevista à Agência Pública, sem confirmar se a decisão já está tomada.
Quando o assunto é a reaproximação com o ex-presidente Lula, o candidato mais bem colocado nas pesquisas, explica que há divergências a serem discutidas. “Na questão da política energética brasileira, não tem mais tempo para que fiquemos só fazendo apologia ao pré-sal, aos combustíveis fósseis, reeditando [a campanha] do ‘petróleo é nosso’. Agora é usar os meios que ainda temos a partir dessa fonte – que não tem como ser suprimida da noite para o dia – para investir recursos na transição energética”, cita. “Por exemplo, sou contra as hidrelétricas do Tapajós, elas vão ser feitas [num eventual governo Lula]? Essas questões todas têm que ser consideradas.”  
Motivo de críticas dentro do PT, ela vê com bons olhos a formação da chapa Lula-Alckmin e a enxerga como um “encontro tardio” entre seu ex-partido e o PSDB. “Em bases programáticas, mesmo sendo partidos da Social-democracia com origens e processos diferentes, PT e PSDB tinham muito mais espaço de conversa do que o PT com Sarney, Collor, Maluf e Renan; e da mesma forma, o PSDB em relação ao senador Antônio Carlos Magalhães”, afirma.
Para que o governo brasileiro esteja à altura do desafio de proteger seus biomas e cumprir sua meta climática, assumida no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), Marina considera que, caso Bolsonaro não se reeleja, o novo presidente deve chegar com as agendas de meio ambiente e clima “legitimadas e fortalecidas”. “Isso não significa apenas um capítulo, um tópico nas páginas fechadas de um programa de governo, por mais tecnicamente interessante que possa vir a ser”, aponta. “As pessoas não podem achar que essa é uma agenda da ecologia pela ecologia, essa é a agenda da economia do século XXI.”
Na última quarta-feira (30), o STF iniciou o julgamento do “pacote verde”, formado por sete ações que questionam o desmonte das políticas ambientais nos últimos anos. Diante de um governo antiambientalista e em meio à crise do clima, qual a importância do Judiciário e da Suprema Corte, especificamente, para garantir que o Brasil proteja minimamente a Amazônia e cumpra sua meta climática?
O que está acontecendo no Brasil é um verdadeiro desrespeito à Constituição. As ações avaliadas agora pelo Supremo se revestem de uma importância estratégica, porque é a única forma de fazer com que o governo [não leve a cabo] tudo aquilo que se constituirá em um processo irreversível para os interesses da proteção do meio ambiente, econômicos, sociais e culturais do Brasil.
O Supremo tem essa incumbência agora, e a forma de fazer isso é ou declarar que o procedimento governamental é inconstitucional, ou que a atitude omissa do governo fere igualmente a Constituição. Então, recorrer ao Supremo nesse momento é um ato de legítima defesa da sociedade para evitar que algo irreversível venha a nos trazer prejuízos igualmente irreparáveis.
As mudanças climáticas já estão acontecendo no mundo e suas consequências são sentidas em vários lugares, sobretudo no Brasil, seja nos acontecimentos que tivemos – como as enchentes no estado de Minas, da Bahia, em São Paulo, no Rio de Janeiro, a catástrofe de Petrópolis –, seja pelos grandes prejuízos econômicos que o próprio agronegócio está vivendo nesse momento em função da estiagem. Você tem aí várias razões para que a instância máxima das cortes brasileiras interdite a ação de alto prejuízo que o governo está praticando. Em relação ao meio ambiente, em relação à economia e em relação à própria sociedade.
Você acredita que esse julgamento é histórico, uma oportunidade do STF mostrar para o mundo que, apesar do governo Bolsonaro, a sociedade brasileira está comprometida com o enfrentamento às mudanças climáticas e com a preservação da Amazônia?
Ele é histórico e, ao mesmo tempo, paradigmático. Tem também o poder de provocar inflexões para além das decisões que estão sendo tomadas. Histórico porque estamos levando para a Corte a legítima defesa da Constituição Federal, porque traz para as instâncias judiciais os crimes que o governo está praticando, seja por desrespeito à Constituição, seja por omissão. Paradigmático porque, a partir daí, você abre precedentes para que o descumprimento do preceito constitucional, do direito a termos um ambiente saudável e equilibrado, não seja mais ferido quer por omissão, quer por descumprimento da lei ou da implementação de políticas públicas que nos levam a alcançar esse objetivo. E produz inflexões para além daquelas que estão sendo julgadas porque, ontem, o próprio governo já tomou a atitude de fazer uma espécie de recomposição do CONAMA, o Conselho Nacional de Meio Ambiente, reavendo a representação das organizações da sociedade, que tinham quatro lugares e agora têm oito [o decreto com a mudança foi assinado por Bolsonaro na quarta-feira, dia 30]. Isso é a demonstração de que o governo sabe que está errado, de que está agindo de forma inconstitucional e se omitindo. E isso é igualmente inconstitucional. [O governo] está assumindo publicamente, fazendo uma confissão de culpa e tentando reparar as violações que fez à nossa Constituição.
“O debate sobre a Amazônia tem que ser nacionalizado”, afirma Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente e senadoraEm outras ocasiões, você afirmou que o problema das políticas ambientais e climáticas é que elas não sobrevivem ao vai e vem dos governos. A litigância climática é um caminho importante para se evitar que isso aconteça? Pode ser um recado aos governos de que, se não priorizarem essas agendas, a sociedade pode, via Judiciário, pressionar por providências? 
Acho que isso vai ser muito mais do que um recado, vai ser uma prática constante nas instâncias superiores das Cortes judiciais para mostrar que enfrentar as mudanças climáticas não é algo fácil e demandará uma ação combinada, de várias possibilidades de obrigar que governos e empresas cumpram seus compromissos assumidos no âmbito da Convenção do Clima.
Uma das coisas que devem começar a ser cobradas judicialmente são cronogramas dentro das metas estabelecidas por governos e empresas. É muito fácil um governo ou o presidente de uma empresa assumir metas altamente louváveis sem que exista um cronograma ou uma agenda de implementação. Como os governos e os presidentes das empresas mudam, vão deixando esses grandes anúncios para a gestão futura. E de gestão em gestão, você não tem ação efetiva para alcançar as metas estabelecidas, aí vira um greenwashing empresarial, governamental e assim por diante. O que vai acontecer em 2030 precisa ter resultados em 2020, 2025, até chegar 2030. Quais são as etapas? Quais são as ações? Qual é o cronograma para que se alcance esse resultado? Não tenho como atingir um resultado grandioso se medidas não são tomadas ao longo do tempo. 
“O Brasil não tem como suportar, sobretudo em algumas agendas como a socioambiental, mais quatro anos de governo Bolsonaro”, afirmaEmbora o ex-presidente Lula lidere as pesquisas há meses, Jair Bolsonaro conserva uma base eleitoral sólida e vem crescendo em intenções de votos nas últimas semanas. O que sua reeleição significaria para as pautas ambiental e climática no Brasil?
Costumo dizer que o Brasil não tem como suportar, sobretudo em algumas agendas como a socioambiental, mais quatro anos de governo Bolsonaro. Se hoje já estamos vivendo, no caso da Amazônia em específico, a ameaça de chegarmos a mais de 20% de desmatamento e entrarmos num processo de savanização, em um ponto de não retorno, com mais quatro anos de governo Bolsonaro essa catástrofe é líquida e certa. Em relação a políticas sociais de educação, ciência, tecnologia e inovação, e até mesmo políticas econômicas que consigam reverter o processo dramático de desemprego e inflação que estamos vivendo, de juros altos e toda essa situação que foi cada vez mais sendo agravada por inoperância, pelo contexto da pandemia e agora da guerra, o Brasil não tem condição de aguentar mais quatro anos de Bolsonaro.
E em relação às políticas de direitos humanos e tantas outras, como é o caso de políticas de proteção e garantia dos direitos das populações indígenas, o Brasil não tem como suportar mais quatro anos de Bolsonaro. Derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo é um ato de legítima defesa. Os esforços que terão de ser feitos após o governo Bolsonaro serão de recuperação pós-guerra, porque Bolsonaro fez guerra contra o meio ambiente, contra a democracia, contra os povos indígenas, contra a saúde pública, contra a educação – fez guerra contra tudo que é de interesse estratégico do Brasil.
Não basta entrarmos na disputa agora com essa despolitização, como se fosse uma espécie de guerra santa, uma santa inquisição política entre o bem e o mal. É fundamental mudar o governo para mudar a realidade. Isso pressupõe, agora durante a campanha, que os candidatos do campo democrático, mais do que ficar com essa ansiedade tóxica de quem declara apoio a eles, comecem a declarar para a sociedade brasileira o que estão apoiando e com o que estão se comprometendo. O presidente Joe Biden conseguiu fazer isso na disputa contra Donald Trump, o que, em uma sociedade altamente polarizada, foi muito importante, porque ao final da eleição a sociedade sabia o que ele estava apoiando e com que estava se comprometendo, para ter legitimidade de implementar esses compromissos após a vitória. O debate sobre a Amazônia tem que ser nacionalizado, o debate sobre a proteção dos biomas brasileiros tem que ser nacionalizado. Os prejuízos econômicos, sociais e ambientais que estamos vivendo não podem passar à margem do debate pela lógica de que isso não rende votos. Você tem que sair legitimado para fazer o que precisa ser feito, e com isso, até conseguir uma espécie de carta de alforria do centrão. Todos ficam reféns do centrão e depois ainda se escondem atrás da ideia de que não tem como fazer, porque, afinal de contas, é o Congresso [quem manda].
Esse é o momento de mobilizar a sociedade brasileira e deixar muito claro que não irá fazer, por exemplo, as hidrelétricas no Tapajós, que não irá repetir Belo Monte, que não vai continuar colocando apenas 1% dos mais de 200 bilhões do plano Safra [de fomento ao desenvolvimento agropecuário em bases sustentáveis] para o programa de agricultura de baixo carbono [ABC]. De que não vai mais ficar com apologia ao combustível fóssil, e que vai investir todas as fichas em uma matriz energética limpa e diversificada para, aí sim, termos segurança energética, alternativas que a gente possa controlar e estabelecer preços. O país que já teve o programa do Proálcool e do biodiesel, se tivesse aprofundado a sua estratégia de segurança energética de base sustentável, não estaria vivendo as agruras que estamos vivendo em relação à dependência de combustível fóssil. Então, repito, mais do que declarar apoio vazio a candidatos, como se estivesse assinando um cheque em branco, vamos dar a eles a oportunidade de deixar muito claro qual o pacto, o acordo, o compromisso que estão apoiando. 
Para Marina Silva, Belo Monte tem baixa eficiência energética e altíssimos impactos ambientais Os governos do PT trouxeram diversos avanços na área ambiental, como a queda drástica do desmatamento na Amazônia de 2004 a 2012 – na qual você teve papel fundamental –, mas também foram marcados por falhas importantes, como a baixa quantidade de homologações de terras indígenas e a construção da usina de Belo Monte, que você acaba de citar. O que esperar de um novo governo Lula – caso a liderança nas pesquisas se concretize – em termos de políticas públicas para o meio ambiente e mudanças climáticas?
Acho que a gente tem que focar no que esperamos de qualquer governo que assuma a presidência da República após a terra arrasada que o Bolsonaro vai deixar em relação a várias políticas públicas. O que se espera, em primeiro lugar, é que o novo presidente chegue com essa agenda legitimada e fortalecida. Isso não significa apenas um capítulo, um tópico nas páginas fechadas de um programa de governo, por mais tecnicamente interessante que possa vir a ser. Sair legitimado e fortalecido é colocar o debate para a sociedade. Obviamente, até agora os programas dos pré-candidatos [à presidência] e as falas que têm feito estão muito aquém da necessidade do país em relação aos desafios da mudança climática, da transição para o modelo sustentável de desenvolvimento, de como combater a desigualdade social, fazer a recuperação econômica já em base sustentáveis, como o mundo inteiro precisa fazer. As pessoas não podem achar que essa é uma agenda da ecologia pela ecologia, essa é a agenda da economia do século XXI.
Sem a proteção das florestas, o Brasil fica altamente vulnerável e os prejuízos de bilhões que já temos na agricultura só irão se agravar. Aqueles que pensam que há alguma vantagem com essa política repetida de exploração de madeira, pecuária de baixíssima produtividade e medidas provisórias [aprovadas] no Congresso Nacional para regularizar