Ideias dos Brics

Da dominação ocidental à desdolarização, um caminho perigoso

Os países do hemisfério sul têm um caminho perigoso a percorrer para escapar das amarras da dolarização.

Brics - Foto: Reprodução
Brics - Foto: Reprodução

Duas coisas interessantes aconteceram na cúpula do BRICS na África do Sul em agosto. Vários novos membros foram convidados a se juntar ao BRICS em 2024: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. E, a pedido do Brasil, foi criada uma comissão para estudar a possibilidade da criação de uma nova moeda para substituir o dólar no comércio internacional. No entanto, os acordos de swap cambial continuarão a ser a maneira pela qual o processo é feito no curto prazo, pois o dólar não pode ser substituído às pressas.

Os países do hemisfério sul têm um caminho perigoso a percorrer para escapar das amarras da dolarização. Os principais problemas, descritos pelos economistas políticos Michael Hudson e Radhika Desai, são os seguintes: os países da América do Sul estão sobrecarregados com imensas dívidas em dólares enquanto as empresas ocidentais reivindicam a propriedade de seus recursos. A estrutura jurídica internacional favorece o Ocidente, privilegiando as empresas norte-americanas e os fundos abutres. A rede secreta dirigida pelos EUA continua tendo a capacidade de fomentar guerras e golpes de Estado contra aqueles que desafiam as regras impostas pelo Ocidente, incluindo as financeiras. Estas são questões que assolam a grande maioria dos países do mundo.

Até agora, a maior parte do mundo não está polarizada. São poucos os países (sobretudo na Europa) que apoiam incondicionalmente o Ocidente liderado pelos Estados Unidos. Por outro lado, um pequeno número de Estados (Rússia, China, Irã) se atreve a recusar categoricamente as exigências do Ocidente.

Todos os que se encontram em locais onde o futuro da economia mundial se desenrolará estão no meio do caminho. Será que vão encontrar uma forma de escapar dessas armadilhas?

A dívida politizada da Argentina

Por cerca de 200 anos, a Argentina foi palco de experiências de subjugação de um país com base no endividamento, primeiro pelos britânicos e depois pelos norte-americanos. Cada vez que um governo desenvolvimentista chegava ao poder e tentava tirar o país de uma crise, era seguido por um governo de direita que mergulhava o país de novo na crise.

Entre os países “no meio do caminho”, a Argentina cumpre um papel especial. O país faz parte da lista dos novos membros convidados para os BRICS. As suas finanças estão em ruínas e o seu futuro presidentel, que recebe conselhos econômicos dos seus quatro cães, quer fechar a maior parte dos órgãos governamentais e usar o dólar americano como moeda. Tal como muitos políticos ocidentais de direita, de Berlusconi e Sarkozy a Trump e Bolsonaro, a marca eleitoral de Milei não é prejudicada nem por suas palhaçadas nem pelos seus planos econômicos inviáveis.

E são mesmo inviáveis. O jornal The Economist observa que “Milei promete cortes de até 15% do PIB, para um setor público que representa cerca de 38% do PIB, mas não sabe apontar onde os cortes serão feitos”.

Também não sabe “como é que o governo de Milei encontrará os 40 bilhões de dólares que a sua equipe consideram necessários para fazer a transição para o dólar. Atualmente, a Argentina nem sequer consegue pagar o [Fundo Monetário Internacional (FMI)], […] a quem deve 44 bilhões de dólares. Sem mais reservas da moeda norte-americana, o banco central argentino está queimando yuans emprestados pela China. […] Milei sugeriu a venda de empresas públicas e dívidas do Estado num fundo offshore para obter o capital necessário. É difícil imaginar que haja muitos compradores”.

O destino da Argentina tem sido controlado por sua dívida imperial desde 1824, quando o banco do Império Britânico (Barings, cujo Lorde, Cromer, utilizou métodos financeiros para conquistar o Egito, entre outras operações memoráveis) concedeu pela primeira vez um empréstimo de um milhão de libras à Argentina recém-independente. Isto foi menos de 20 anos após os britânicos terem desembarcado forças para tentar, sem sucesso, colonizar a Argentina. Acabaram considerando a arma financeira mais eficaz. O primeiro de nove calotes seguiu-se em 1827. O último foi em 2020 (o jornal The Economist defende que haverá um décimo calote).

No século XX, a Argentina viveu entre governos eleitos e ditaduras militares e alternou entre abordagens econômicas desenvolvimentistas e neoliberais. Nos períodos neoliberais, a Argentina foi o local de inovação onde foram inventadas novas experiências de pilhagem de um país. Entre elas, o que Esteban Almiron definiu como a “bicicleta financeira” possibilitada pela indexação do peso ao dólar americano:

“Quando os especuladores bilionários foram autorizados a trocar pesos argentinos por quantidades ilimitadas de dólares, beneficiando-se de taxas de juros [elevadas] em pesos, foi o Estado que teve de pedir esses dólares emprestados a bancos privados [norte-americanos] ou ao FMI e pagar os respectivos juros. Uma vez trocados, os dólares obtidos pelos especuladores eram transferidos para fora do país, deixando a dívida para o Estado”.

Em 2001, a Argentina deu um calote e abandonou a paridade. Em 2005, pagou a totalidade da sua dívida ao FMI, no valor de 9,5 bilhões de dólares, poupando 842 milhões de dólares em juros nos anos seguintes. Também negociou, até 2010, uma reestruturação de 92% do resto da dívida nacional.

A história de Almiron sobre a dívida argentina descreve o que aconteceu a seguir: uma disputa sobre a Argentina e os abutres americanos. Os 8% restantes da dívida oferecem um estudo de caso da estrutura jurídica internacional fraudulenta que facilita a pilhagem das economias do Sul Global pelos EUA. Essa dívida era detida por fundos abutres administrados pelo bilionário americano Paul Singer e outros. Os abutres recorreram aos tribunais dos EUA e, previsivelmente, em 2012, obtiveram exatamente o que queriam – um juiz dos EUA determinou que a Argentina teria de pagá-los integralmente.

A então presidente Cristina Fernández de Kirchner recusou-se a pagar, mas as eleições seguintes levaram Mauricio Macri ao poder. Macri aumentou a relação dívida/PIB da Argentina de 52,6% para 90,2% e supervisionou um aumento na pobreza de 30% para 40% (quatro milhões de pessoas entrando na pobreza) Quando deixou o poder em 2019, a Argentina tinha sofrido uma fuga de capitais de 79,8 bilhões de dólares e entrou novamente em inadimplência. Almiron escreve que “Macri e a sua equipe destruíram as finanças relativamente saudáveis do Estado argentino em menos de dois anos”. Macri trouxe de volta a bicicleta financeira: 

“O seu truque consistia em comprar pesos, beneficiar-se das taxas [de juro elevadas] em pesos, depois convertê-los em dólares e levá-los para fora do país. Entretanto, o Estado tinha de fornecer uma quantidade praticamente infinita de dólares aos especuladores e ficava com os pesos”.

Ao sair da presidência, Macri fez um empréstimo de 57 bilhões de dólares com o FMI, mais tarde reduzido para 44 bilhões, que “desapareceu em apenas 11 meses”.

O seu sucessor, Alberto Fernández, tentou reconstruir o Ministério da Saúde durante a pandemia de COVID-19, mas ficou preso ao empréstimo de 44 bilhões de dólares. Tanto por desespero como por ideologia desenvolvimentista, Fernández virou-se para a China, aderindo à Iniciativa Cinturão e Rota em 2022 e candidatando-se com sucesso, ao que parece, “aos BRICS”. A Argentina aderirá em 2024. No entanto, até agora, a colaboração com a China (e com o Qatar) tem se resumido à obtenção de empréstimos adicionais da China para pagar o FMI. Este não é exatamente o tipo de acordo “win-win” (de ganho mútuo) que a China procura com os países do Sul Global nos seus investimentos em infra-estruturas e acordos comerciais em torno de recursos.

Uma vez eleito, é previsto que Milei retire a candidatura do país aos BRICS. Se mantiver a Argentina nos BRICS, aplicará o seu talento financeiro (e o dos seus cães) para facilitar a utilização da Argentina pelos EUA, não só para drenar a Argentina, mas também a China (e talvez outros credores emergentes).

A cada novo mergulho na dívida, a direita do país tenta afundar o Estado de tal forma que este nunca mais possa emergir. Quando chegar ao cargo, Milei, o “encantador de cães”, prometeu superar o histórico da destruição deixada por Macri.

As dificuldades do Paquistão, aliado dos EUA e da China

Tal como a Argentina, o Paquistão tem sido controlado por regimes imperiais através de dívidas, primeiro britânicas e depois norte-americanas, durante séculos. O que é atualmente o Paquistão, foi em tempos passados um grupo de províncias ricas da Índia Britânica. Cada reino que a Companhia Britânica das Índias Orientais colocou sob as suas botas foi sobrecarregado com dívidas, o principal mecanismo (havia outros) através do qual a Grã-Bretanha drenou 45 trilhões de dólares do subcontinente. A Grã-Bretanha dividiu então o subcontinente entre Índia e Paquistão antes de o entregar. Atualmente, a Índia desempenha um papel ambíguo nos BRICS, enquanto o governo pós-golpe do Paquistão recorreu à violência para tentar controlar o país.

Tal como a Argentina, o Paquistão é um país onde tanto os BRICS como o FMI têm uma forte presença econômica. Em abril, cerca de um ano após a destituição do antigo primeiro-ministro Imran Khan, o Instituto para a Paz dos Estados Unidos informou que o Paquistão enfrentava uma crise econômica “existencial”. Dividindo a dívida em três tipos (multilateral, privada e chinesa), o USIP apresentou uma repartição da dívida do Paquistão e a quem ela era devida: “Em dezembro de 2022, o Paquistão tinha uma dívida externa e passivos de 126,3 bilhões de dólares. Quase 77% dessa dívida, no valor de 97,5 bilhões de dólares, é diretamente devida pelo governo do Paquistão a vários credores; um adicional de 7,9 bilhões de dólares é devido por empresas do setor público controladas pelo governo a credores multilaterais”.

A dívida multilateral do Paquistão, no valor de 45 bilhões de dólares, distribui-se da seguinte forma: Banco Mundial (18 bilhões de dólares), Banco Asiático de Desenvolvimento (15 bilhões de dólares) e FMI (7,6 bilhões de dólares), com valores menores para o Banco Islâmico de Desenvolvimento e o Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas. Deve mais 8,5 bilhões de dólares aos principais países credores: Japão, Alemanha, França e Estados Unidos.

A dívida privada do Paquistão é composta em sua maioria por Eurobonds – um título internacional denominado em uma moeda não nativa do país onde é emitido – e Sukuk bonds (é o nome árabe para certificados financeiros), no valor de 7,8 bilhões de dólares. Também tinha empréstimos comerciais estrangeiros no valor de quase 7 bilhões de dólares, que provavelmente aumentarão para quase 9 bilhões de dólares até o final do atual ano fiscal.

Por último, o USIP colocou a “dívida chinesa” de 27 bilhões de dólares numa categoria separada:

“Isto inclui cerca de 10 bilhões de dólares de dívida bilateral e 6,2 bilhões de dólares de créditos fornecidos pelo governo chinês a empresas do setor público paquistanês e empréstimos comerciais chineses de cerca de 7 bilhões de dólares. Além disso, a Administração Estatal de Divisas da China (SAFE) depositou 4 bilhões de dólares em depósitos estrangeiros no banco central do Paquistão”.

Com um PIB de 376 bilhões de dólares e uma dívida de 126 bilhões de dólares em 2022, o índice de dívida em relação ao PIB do Paquistão, de 34%, é muito mais favorável do que o da Argentina, mesmo antes do desastre cometido por Mauricio Macri. Ainda assim, os credores ocidentais do Paquistão apresentam-na como uma situação impossível e a inflação está, realmente, causando dificuldades à população.

O orçamento de Estado para 2022-23 previa receitas de 24 bilhões de dólares e despesas de 33 bilhões de dólares. Os pagamentos da dívida, não contabilizados, pareciam exceder as receitas do Estado, em quase 25 bilhões de dólares.

A dívida chinesa poderia ser reescalonada de acordo com o precedente histórico, mas representava apenas 30% do total. E o resto? Ao longo das décadas, os governos desenvolvimentistas da Argentina tentaram utilizar o crescimento econômico para aumentar a base fiscal e de exportação e reduzir a dívida quando estavam no poder, mas as previsões de crescimento do Paquistão não são boas. Do mesmo modo, a longo prazo, tal como documentado no livro de Jawad Syed e Yung-Hsiang Ying, China’s Belt and Road Initiative in a Global Context Volume II: The China Pakistan Economic Corridor and its Implications for Business, de 2020, o CPEC prevê a modernização das cadeias de valor e das infra-estruturas do Paquistão como um processo de desenvolvimento econômico para ambos os países.

Mas e a curto prazo? O Paquistão tentou ser criativo: o primeiro-ministro Imran Khan tinha acabado de fechar um acordo com a Rússia sobre energia e trigo, “os dois produtos mais necessários e inflacionários do mercado”, quando foi deposto. O governo pós-golpe de Estado anulou o acordo, tentando evitar problemas com os EUA por negociar com países sancionados por eles. O Paquistão aproveitou um exemploda China anterior à visita de Nixon e utilizou o escambo. Mas os credores ocidentais ainda estão lá, exigindo serem pagos (em dólares). Seja baixando a avaliação de crédito do Paquistão, seja controlando e punindo o Paquistão como patrocinador financeiro do terrorismo através do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), os Estados Unidos dispõem de muitos instrumentos para obrigar o país a cumprir com a sua dívida.

Como é que a situação se tornou tão grave? As finanças do Paquistão, incluindo as dívidas dos EUA, estão ligadas à rede de relações secretas entre os dois países e as intervenções de ambos no Afeganistão desde a década de 1970. É certo que os Estados Unidos e o Paquistão comercializam algodão e têxteis, aço e maquinaria, mas o cerne da relação econômica é marcial. O povo do Afeganistão foi quem mais sofreu durante a guerra, tendo o autor Nicolas J.S. Davies estimado um número de mortos de 875 mil mortos, mas o Paquistão também sofreu. A intervenção do Paquistão no Afeganistão e as operações americanas nas zonas rurais do Paquistão custaram ao aliado americano 150 bilhões de dólares e 70 mil vidas, segundo o embaixador paquistanês nos Estados Unidos em 2021 – mas segundo Davies, foram 325 mil mortes.

O montante de dinheiro que os Estados Unidos gastaram na ocupação do Afeganistão é imenso e provavelmente incontável. Existem números oficiais que apontam para 100 bilhões de dólares só em contratos militares. O colunista Khawaja Akbar ironizou que, se o Paquistão estivesse repassando dinheiro da ajuda militar aos Talibãs, só poderia ser uma fração do que os Estados Unidos gastaram: “Os 1 trilhão de dólares gastos pelos EUA no Afeganistão durante o mesmo período não conseguiram anular o efeito dos 30 bilhões de dólares dados ao Paquistão”.

Quando Imran Khan pôs fim ao apoio ao projeto dos EUA no Afeganistão, a ocupação estava com os dias contados: a logística dos EUA para a guerra afegã de 2001-2021 passava toda pelo Paquistão. Um artigo do New York Times publicado pouco depois da tomada do poder pelos talibãs dizia que “os portos e aeroportos do Paquistão constituíam os principais pontos de entrada e linhas de abastecimento do equipamento militar americano necessário no Afeganistão”. A logística da ocupação americana era uma questão delicada e as relações entre os Estados Unidos e o Paquistão romperam-se várias vezes por causa disso.

Tariq Ali escreveu sobre um desses momentos no seu livro de 2008, The Duel:

“O país está à beira de uma crise alimentar e energética. A inflação aproxima-se dos 15 [por cento]. O preço do gás (utilizado para cozinhar em muitas casas) subiu 30 [por cento] e o preço do trigo mais de 20 [por cento] desde novembro de 2007. Os preços dos alimentos e dos produtos básicos estão em alta em todo o mundo, mas há um problema adicional no Paquistão: há demasiado trigo a ser contrabandeado para o Afeganistão para alimentar os exércitos da OTAN. Segundo uma sondagem recente, 86% ‘dos paquistaneses têm cada vez mais dificuldade em comprar farinha, e culpam o seu novo governo. O índice de aprovação do [antigo Presidente Asif Ali] Zardari caiu para 13%’”.

Não se pode falar da economia do contrabando no Paquistão e no Afeganistão sem mencionar o ópio. Tratava-se uma economia de riquezas literalmente incontáveis, talvez 2 bilhões de dólares, talvez muito mais, para organizações secretas, organizações criminosas e instituições financeiras sediadas nos EUA e no Paquistão, a que os talibãs puseram fim.

Quando os Estados Unidos roubaram as reservas de 7 bilhões de dólares do Afeganistão, após a tomada do poder pelos Talibãs, o Paquistão também sofreu com isso, pois era o principal parceiro comercial do país.

Durante as décadas de guerras afegãs, os Estados Unidos e o Paquistão desenvolveram dossiês cheios de informações secretas um sobre o outro, de tal forma que, após a invasão do Afeganistão em 2001, os Estados Unidos se certificaram de que o Paquistão conseguiria libertar os seus agentes mais importantes. Esta operação viria mais tarde a ser designada pelos Estados Unidos como a “ponte aérea do mal”.

Podemos resumir isto da seguinte forma: ao longo da guerra dos EUA contra o Afeganistão, o Paquistão teve de suportar uma imensa fatura de despesas secretas, um imenso número de mortos e uma economia ilícita e paralela que só prejudicou a sua economia formal.

Após a tomada do poder pelos Talibãs e a derrubada de Imran Khan, os Estados Unidos retomariam esta rede de relações secretas com o Paquistão, desta vez não por causa do Afeganistão, mas da Ucrânia. De acordo com o The Intercept, as negociações do Paquistão com o FMI após o golpe foram atenuadas por um acordo secreto para produzir munições para os Estados Unidos, munições que os Estados Unidos enviariam depois para a Ucrânia para combater a Rússia. Não é preciso dizer que, se o acordo de Imran Khan com a Rússia sobre a energia e o trigo tivesse sido concretizado, o Paquistão provavelmente não estaria enviando munições para o lado ucraniano da guerra.

Outros casos

Entre a Argentina e o Paquistão, muitos dos dilemas do mundo dominado pelo dólar e do mundo pós-dólar estão encapsulados. Mas uma rápida visita a alguns outros Estados revela outras dinâmicas. O FMI quer que o Egito (outro novo convidado dos BRICS) desvalorize a sua moeda; o presidente egípcio, que chegou ao poder através de um golpe de Estado há uma década, está prolongando as negociações. Manter o Egito fora de uma situação revolucionária é a forma como os Estados Unidos garantem a segurança de Israel, razão pela qual é de se esperar que essas negociações se arrastem. No Líbano, a estratégia do FMI é diferente: manter o Líbano num estado de colapso financeiro é outro dos pilares da estratégia americana/israelense, pelo que, tal como no caso da Argentina, o objetivo é uma crise financeira interminável. Até agora, missão cumprida. A Tunísia tem sido pilhada por acordos de dívida neocolonial desde o século XIX. A situação mantém-se ininterrupta. O Sri Lanka, devastado pelo tsunami de 2004, passou a receber empréstimos predatórios do FMI a partir de então. Apesar de apenas 10% de sua dívida ser devida à China, o Sri Lanka é referido no Ocidente como estando preso numa “armadilha da dívida chinesa”. De fato, como a dívida chinesa é muito pequena, o Sri Lanka está, na realidade, numa armadilha da dívida ocidental, da qual dificilmente conseguirá escapar.

Para concluir, alguns casos finais: no Quênia, o FMI está pressionando fortemente, exigindo mais sofrimento aos quenianos, sob a forma de impostos mais altos e menos despesas, as habituais medidas de austeridade. As autoridades quenianas anunciaram no início deste ano que não vão tentar reprogramar ou reestruturar a dívida. O Quênia é também o local de um dos projetos emblemáticos entre China-África, a Estrada de Ferro Mombasa-Nairobi Standard Gauge (SGR), além de outras infra-estruturas. Por outro lado, uma base militar do Comando Africano dos EUA (AFRICOM) também se encontra em Mombaça. A Zâmbia, que tem a sorte de dever 4,1 bilhões de dólares da sua dívida de 6,3 bilhões de dólares à China, passou por uma reestruturação em junho. Naturalmente, o FMI considerou este fato como um triunfo da sua própria flexibilidade e visão de longo prazo, afirmando que o acordo estava “ajudando a colocar a Zâmbia no caminho do crescimento econômico sustentável e da redução da pobreza”. O presidente francês, Emmanuel Macron, também assumiu o crédito pelo “feito histórico”: “Continuamos [mobilizados] para garantir que outros países presos na armadilha da dívida beneficiem-se de uma resposta multilateral”, afirmou no Twitter.

Em todos estes casos, os EUA e o FMI têm o cuidado de exercer pressão apenas quando têm as cartas na mão. Quando a China detém uma grande parte da dívida ou pode oferecer uma alternativa significativa, o FMI também parece encontrar uma forma de ser menos arrogante com os seus devedores. O FMI também precisa ser mais brando: já não é o único jogador na cidade, e negociar com demasiada força na presença de alternativas levará ao calote, talvez o último do FMI.

Em resumo: A desdolarização é um caminho cheio de desafios. A maioria dos países não é a maior economia do mundo (China) nem o concorrente militar dos Estados Unidos (Rússia). Poucos países se enquadram na categoria do Irã, da Venezuela, de Cuba, do Afeganistão e da RPDC, que sofreram tudo o que os Estados Unidos podem realmente usar contra eles e não têm para onde ir a não ser para cima.

A maioria é como a Argentina e o Paquistão; no meio do sofrimento econômico, dos perigos e das decisões difíceis. A libertação do poder do Ocidente será dolorosa, mas já não parece impossível.

Este artigo foi produzido pela Globetrotter e traduzido por Raul Chiliani para a Opera Mundi. Justin Podur é um escritor que vive em Toronto e é colaborador da Globetrotter. Você pode encontrá-lo em seu site podur.org e no Twitter @justinpodur. Ele leciona na Universidade de York, na Faculdade de Mudanças Ambientais e Urbanas.