História Residual

Era uma vez o Lixo

Até ao aparecimento de sociedades com escrita, talvez 90% do que os arqueólogos escavam, documentam e estudam é essencialmente o que foi considerado inútil – artefatos de pedra partidos ou desgastados, subprodutos da produção de ferramentas, cerâmica fragmentada, restos de alimentos, vidro partido, metais corroídos, e assim por diante. Em suma, restos materiais que não tinham mais utilidade, e que as sociedades não conseguiram reintegrar.

“Hércules desvia o curso do rio Alfeu”, de Francisco de Zurbarán (1634) Fonte: Wikimédia Commons / Museo del Prado
“Hércules desvia o curso do rio Alfeu”, de Francisco de Zurbarán (1634) Fonte: Wikimédia Commons / Museo del Prado

No mundo contemporâneo, a produção e gestão de resíduos, vulgo lixo, representa um dos desafios mais prementes que enfrentamos. Por um lado, não queremos abdicar de uma vida cada vez mais consumista, mas por outro, temos problemas em lidar com os restos desse consumo. O destino do nosso lixo tem enormes implicações na sustentabilidade dos ecossistemas e consequentemente no nosso bem-estar.

Este problema global, que vai desde aterros  a transbordar até oceanos asfixiados por plásticos, exige soluções colectivas para as quais os contributos da ciência e da tecnologia são essenciais, mas também uma reavaliação crítica dos nossos hábitos individuais de utilização e descarte dos despojos dos nossos dias.

É preciso mudar comportamentos e, nesse processo, antecedido de reflexão, talvez uma viagem no tempo em torno do lixo seja de alguma utilidade.

Os restos materiais do nosso passado podem, muitas vezes, ser chamados de lixo. A sua definição em contextos muito antigos inclui restos materiais orgânicos e inorgânicos cuja forma de abandono está relacionado com ciclos culturais, sociais e económicos de fabrico, distribuição, utilização, consumo e descarte.

Aqui entra a Arqueologia, disciplina científica essencialmente dedicada a descobrir o significado do que foi outrora descartado. Ao analisar cuidadosamente os vestígios de atividades passadas, os arqueólogos procuram compreender o comportamento humano e os padrões de transformação cultural ao longo do tempo.

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Acreditem que as nossas meticulosas escavações de, por vezes literalmente, antigos montes de lixo oferecem uma janela fascinante para a vida das comunidades de outrora. São os materiais abandonados há milénios que nos aproximam do que poderia ter sido o quotidiano dessas pessoas, a sua economia, organização social e até mesmo as suas crenças.

Há uma falta geral de consciência sistemática sobre a natureza do lixo. Muitas vezes, as pessoas descuram o lixo que geram diariamente, bem como as suas implicações. Aplica-se aqui o velho ditado “longe da vista, longe do coração”. Um dos principais desafios na educação das pessoas sobre o lixo, é que ele é ubíquo, mas muitas vezes passa despercebido. E ele diz muito sobre nós, no passado e no presente.

William Rathje, arqueólogo americano, tornou-se pioneiro num nicho de conhecimento apelidado de Garbology em inglês, que numa grosseira tradução seria Lixologia. Na década de 70 iniciou, com um olhar arqueológico, o projeto “Lixo do Tucson” e, analisando o lixo das pessoas, descobriu pormenores bem interessantes sobre a relação entre o comportamento humano e a gestão dos seus resíduos. Rathje notou uma discrepância entre o que as pessoas dizem de si mesmas e dos seus actos e a realidade. Por exemplo, enquanto muitos afirmavam consumir muitas frutas e vegetais, os seus restos contavam outra história. Da mesma forma, muitas vezes havia uma lacuna entre a quantidade de reciclagem que as pessoas diziam fazer e a que o seu lixo indicava. Acredito que, mesmo décadas volvidas, haverá atualidade nestas observações.

Mas regressemos ao passado.

Até ao aparecimento de sociedades com escrita, talvez 90% do que os arqueólogos escavam, documentam e estudam é essencialmente o que foi considerado inútil – artefatos de pedra partidos ou desgastados, subprodutos da produção de ferramentas, cerâmica fragmentada, restos de alimentos, vidro partido, metais corroídos, e assim por diante. Em suma, restos materiais que não tinham mais utilidade, e que as sociedades não conseguiram reintegrar.

Em épocas em que prevalecia um estilo de vida nómada, o problema dos restos, incluindo matéria orgânica, representava desafios mínimos para os grupos humanos e tinha pouco impacto no ambiente. Nestas épocas, por vezes, é até difícil distinguir o que seriam os restos provocados por humanos, ou restos de outros animais, nomeadamente carnívoros que também ocupavam grutas. Contudo, o movimento constante dessas populações significava que o lixo era menos concentrado e tinha mais oportunidade de se decompor naturalmente, reduzindo o seu impacto a quase nada. Não havia pegada ecológica.

É importante notar que então a reutilização seria uma prática comum, especialmente entre as comunidades tardias de caçadores-coletores, que reaproveitavam materiais inclusive para construção. Vejam-se as impressionantes cabanas construídas há cerca de 15 mil anos com ossos de Mamute na Europa Central, nomeadamente no território da Ucrânia.

Escavação de cabana com ossos de Mamute em Mezhyrich, Ucrânia Fonte: Don’s Maps
Escavação de cabana com ossos de Mamute em Mezhyrich, Ucrânia Fonte: Don’s Maps

De facto, durante milhares de anos, os nossos antepassados deixariam os restos de comida e materiais inutilizáveis onde viviam. No entanto, mesmo na Pré-História mais antiga, podemos discernir, através da distribuição espacial dos restos, que já existia uma deposição estruturada do lixo, colocado deliberadamente longe das principais áreas de habitat.

Podemos ver um exemplo deste comportamento na Cueva de El Mirón, em Espanha, onde os arqueólogos descobriram uma acumulação invulgar de ossos enegrecidos numa área isolada da gruta. Estes ossos, pertencentes a vários animais, sugerem que há cerca de 13.000 anos os habitantes deste local separavam deliberadamente restos de comida e ossos, estes últimos tornando-se negros devido à decomposição. Os vestígios estudados parecem indicar que eles ocupavam sazonalmente a principal câmara da gruta e a mantinham limpa movendo sistematicamente o lixo acumulado para uma área de despejo.

Escavações na Cueva de El mirón Fonte: Gabinete de Prensa del Gobierno de Cantabria
Escavações na Cueva de El mirón Fonte: Gabinete de Prensa del Gobierno de Cantabria

Estes vestígios pertencem ao final do Paleolítico Superior, época a que remonta a domesticação do cão. Entre os vários benefícios que nos trouxeram estes nossos amigos, os cães terão desempenhado um papel significativo no consumo de resíduos orgânicos, impedindo assim a sua decomposição dentro dos espaços habitacionais. A presença de cães pode ter ajudado a manter os acampamentos mais limpos e higiénicos, reduzindo a acumulação de resíduos orgânicos e os riscos associados à sua decomposição, como a atração de predadores ou a propagação de doenças.

Mas um exemplo mais próximo de nós são os concheiros, estruturas acumulativas compostas por restos de ossos e conchas, de uma época chamada Mesolítico, desde há cerca de 7500 mil anos. Encontramo-los entre o Tejo e o Sado e não eram apenas habitats, eram também locais de enterramentos funerários. Existem em muitas partes do mundo e alguns devido à sua enorme dimensão, são considerados marcadores territoriais. São exemplo disso os Sambaquis brasileiros. Segundo alguns arqueólogos, poderiam ser vistos como uma forma antrópica de ritualizar a paisagem, ou por outras palavras, uma monumentalização do lixo.

Pormenor da escavação de um esqueleto humano no Concheiro do Cabeço da Amoreira. Foto de Mirjana Roksandic
Pormenor da escavação de um esqueleto humano no Concheiro do Cabeço da Amoreira. Foto de Mirjana Roksandic

Talvez nestes locais, pelas suas características, tenham surgido os primeiros problemas sanitários. No entanto, nesta época os grupos humanos eram semi-nómadas, ainda se moviam regularmente, realizando uma espécie de reciclagem territorial. Esta mobilidade ajudava a mitigar os potenciais problemas causados pela acumulação de restos orgânicos.

Viajemos ao continente americano. Nos Estados Unidos, um exemplo curioso de gestão estratégica do espaço pode ser observado nos Everglades, onde as acumulações de lixo do passado possivelmente desempenharam um papel crucial. Estas ilhas, agora uma reserva ecológica vital, podem ter sido intencionalmente formadas através da acumulação de resíduos de ocupações humanas iniciadas na Pré-História e continuadas durante milhares de anos. Estas acumulações, compostas de restos de peixe, conchas, ossos, cerâmica, artefactos de pedra, não só facilitaram a habitação dessas áreas criando elevações semelhantes a ilhas, mas também provavelmente alteraram a química do solo, tornando-o mais apetecível para várias espécies de plantas e animais. A acumulação de restos levou à criação de novos habitats para plantas, animais e humanos. Em particular, o descarte de ossos contribuiu para o desenvolvimento de solos ricos em fósforo e, portanto, mais férteis.

É um exemplo de como o lixo foi integrado nas estratégias de ocupação espacial, e de um significativo impacto humano sem consequências negativas.

Parque Nacional dos Everglades, Florida Fonte: Wikimédia Commons
Parque Nacional dos Everglades, Florida Fonte: Wikimédia Commons

O início da domesticação de plantas e animais, período chamado Neolítico que se iniciou há cerca de 10 mil anos em algumas zonas geográficas, foi marcado pela transição para um estilo de vida sedentário e, talvez, então começassem as primeiras crises de lixo na nossa história. Viver permanentemente num local e em grandes grupos de pessoas, muito mais numerosas do que anteriormente, levou à necessidade de uma gestão controlada de resíduos. Assim, começaram a surgir soluções para os crescentes restos, como preenchimento de fossas e silos e até mesmo a criação de locais específicos para a sua acumulação longe das áreas residenciais.

Mas avancemos no tempo.

As primeiras lixeiras surgem em Atenas. Os gregos passaram a cobrir o lixo com camadas de terra e criaram, em 500 a.C., o que hoje chamamos de aterros controlados, mas naquela época o lixo era composto basicamente por restos de comida.

Na antiguidade clássica temos o claro início de uma dualidade própria do lixo e dos dejectos: o necessário afastamento, e mesmo receio e rejeição, por um lado, e aceitação da sua utilidade, por outro. São inúmeros os exemplos que indicam como os dejectos e o lixo orgânico produzidos nas cidades da Antiguidade foram usados na agricultura.

Na mitologia grega encontramos inclusive uma expressão dessa dicotomia: as fezes acumuladas nas estrebarias do rei Augias são um problema a ser resolvido pelo lendário Hércules. O trabalho de Hércules consiste em desviar o curso do rio Alfeu para dentro dos estábulos, removendo o estrume para os campos que são, assim, fertilizados para a agricultura. Daí ser Hércules o patrono da limpeza urbana na antiga Grécia.

Por volta de 320 a.C., Atenas tinha já deliberações sobre limpeza pública. A cidade possuía uma “polícia de rua” – os chamados Astynonen, que se ocupavam das normas e alinhamento das construções, abastecimento de água e limpeza pública da cidade. A eles estavam subordinados os Koprologen, que limpavam as ruas e recolhiam dejectos e os deviam transportar a uma distância de pelo menos 10 estádios (cerca de 1920m) para fora dos muros da cidade.

Na época romana era frequente a construção de silos, lixeiras e aterros em áreas não urbanizadas, localizadas no entorno das cidades. Desde os primórdios do Império, as administrações romanas obrigavam a que os habitantes depositassem os resíduos em áreas extramuros, de forma a que os aterros se distanciassem da população, nos lugares conhecidos como estercolaris.

Além disso, também implementaram o sistema de recolha agrupada, através do uso do carrus estercolari (carros de lixo).  Estes percorriam as ruas retirando os resíduos que depositavam nos puticulum, depósitos de compostagem, situados fora da cidade. Em algumas ocasiões, os stercorari eram acompanhados por porcos que ajudavam na limpeza, especialmente com o lixo orgânico.

Roma, com o seu estimado milhão de habitantes, desenvolveu um robusto sistema de limpeza pública, sendo famosa a sua Cloaca Máxima, isto é o esgoto, que desembocava no rio Tibre.

Cloaca Máxima desenhada por Giambattista Piranesi, C. 1748 Fonte: Wikimédia Commons
Cloaca Máxima desenhada por Giambattista Piranesi, C. 1748 Fonte: Wikimédia Commons

Ao longo da sua existência, os humanos sempre geraram resíduos, mas até ao fim do período em que a agricultura prevaleceu, o impacto ambiental deste lixo era localizado, afetando apenas áreas limitadas. Este impacto localizado permitia que os processos naturais de purificação e inertização funcionassem eficazmente, sem causar significativos problemas ambientais e sanitários (numa perspectiva global, já que nas cidades ocorriam problemas sanitários).

A grande mudança no impacto do lixo ocorreu com a Revolução Industrial, seja pelos resíduos da industrialização, seja pelo exponencial crescimento das cidades. Mas essa é outra história. Antes disso, as estratégias empregadas para lidar com o lixo focavam-se em soluções de baixa energia e na utilização eficiente de recursos.

Naturalmente que não proponho que regressemos a épocas pré-industriais e é obvio que estas soluções antigas não são diretamente aplicáveis a todos os problemas modernos de resíduos, mas elas destacam princípios importantes que acredito serem valiosos para nós. Além da reciclagem, há uma necessidade de reforçar a reutilização das coisas quotidianas, alterar e reduzir o consumo e de organizar sistemas, inclusive domésticos, que facilitem a reabsorção de materiais orgânicos, como a compostagem.

Biografia do autora: Sara Cura é arqueóloga e investigadora em Pré-História com trabalho desenvolvido em Museologia, Património Cultural e Gestão do Território. Lecionou Arqueologia no Instituto Politécnico de Tomar (2003 –2019) e trabalhou no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação (2003-2020). Integrou e integra projetos de investigação internacionais e é autora/co-autora de publicações científicas. Como comunicadora de ciência desenvolve o Podcast Let’s Rock -um podcast da Idade da Pedra e é cronista de Ciência e História no jornal mediotejo.net. Atualmente é Gestora de Ciência na Escola Superior de Comunicação Social/ Instituto Politécnico de Lisboa.

Source: Human Bridges

Este artigo foi produzido pela mediotejo.net (https://mediotejo.net/era-uma-vez-o-lixo/) e o autor colabora com a Human Bridges.