O pai de Elodie (Millie Bobby Brown) lhe arranja um casamento que promete salvar seu povo da miséria e trazer dias de tranquilidade para o reino. Como se não bastasse o dote, a família do noivo, o próprio noivo e seu próprio reino parecem bonitos, tradicionais e perfeitos. Ou será que não? Quem salva a salvadora?
Quem assiste está disposto a aceitar a existência de dragões, de pessoas que nascem privilegiadas em razão de uma suposta linhagem divina e até de uma princesa disposta a tudo por seu povo, mas o filme testa o espectador já no começo quando a princesa aparece sozinha cortando e carregando lenha para gente com frio. Noutra ocasião, também há a incrível conveniência de encontrar um tipo de lesma que dá luz e cura justamente onde vive a algoz, a terrível fera que voa ligeira e expele chamas. Numa situação crítica como aquela, onde a morte parece a única certeza e só dá para escolher se morre assim ou literalmente assado, as lesmas são mais efetivas que muito programa governamental.
Dito isso, a sororidade é o tema forte do filme. De certa forma, as mulheres se ajudam através dos tempos, fazendo indicações fundamentais de segurança e estratégia. Ainda que realmente seja a rainha (uma mulher) quem assuma um papel vilanesco, antagonizando, organizando o sacrifício e o algoz (a dragão) seja fêmea, esses elementos citados e até o alerta da madrasta às vésperas do casamento demonstram a força feminina unida em apoio mútuo pela sobrevivência. É possível ver ainda que os temores da madrasta pincelados à véspera intencionam subverter o papel tradicional assumido por aquela que ocupa o lugar anteriormente da mãe: o papel de má fica para a outra.
Não é possível esquecer a ajuda fundamental do seu pai na jornada de luta de Elodie. A mesma mão que a colocou naquela situação dizendo que o povo precisava dela também a auxiliou para que ela conseguisse a liberdade. Porém, sua atuação vem para expiar sua culpa, aliviando sua consciência e morrendo para que a filha sobrevivesse.
Tanto é assim que Elodie retorna para o lugar horrível do qual custou a sair por conta própria para salvar a irmã. Sororidade. Mas, desta vez, vai mais preparada do que chegou: deixando de lado os últimos detalhes femininos das vestimentas que tanto a atrapalharam no início, a princesa se arma fisicamente e com os conhecimentos transmitidos pelas vítimas passadas. E, no enfrentamento definitivo, cara a cara com a dragão, ainda uma vez reconhece a importância daquelas que estiveram ali quando diz que não está sozinha, que há um exército com ela, todas as outras vítimas inocentes.
Um detalhe que beira a incoerência está na capacidade de raciocínio da dragão. A fama das grandes figuras é de serem inteligentes e terem uma boa memória, mas não é o que vimos aqui. A história diz que, há séculos, a cada geração, a dragão sempre recebe três donzelas, aparentemente no mesmo dia, anunciadas como herdeiras da família real e irmãs de sangue. Sendo todas diferentes, entendemos que fisionomia não é o forte da monstra. E tudo bem, o que importa é o sangue. Tanto é assim que, sabendo disso, a família real obriga todas as noivas a fazerem um pacto de sangue para, deste modo, terem o sangue real (e servirem como vítimas). O enredo diz que a família real engana deliberadamente a dragão. Porém, a dragão já havia recebido uma vítima naquele dia e não se referia à ela como irmã de Elodie da mesma forma como se referia à Floria, a irmã mais nova, chegando ao ponto de usá-la como isca. E tem mais: o rei, pai da Elodie, foi procurá-la. A dragão acreditou que aquele homem realmente era pai da moça, mas era impossível que ele tivesse o sangue real que a interessava. Ela sentiu o cheiro do sangue daquele homem e não atinou que não fazia sentido?
Com um desfecho previsível, Elodie encerra o ciclo de ódio e permite que a dragão acerte as contas com quem realmente deve: a rainha e seu reino. Mesmo que tenha sido um rei quem deflagrou a ira da dragão, à rainha, que só enxerga quem vem da mesma classe que ela, só resta a justiça “dragoniana”. Depois de tanta sororidade, como reclamar?
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