A Polícia Militar do Rio de Janeiro deflagrou na madrugada deste sábado (31) mais uma operação de guerra travestida de ação de segurança pública, desta vez na Rocinha, uma das maiores favelas da Zona Sul da cidade. Sob o pretexto de prender supostos chefes do crime do Ceará, agentes do Estado invadiram a comunidade com armamento pesado, deixaram um policial ferido e impuseram o pânico a milhares de moradores.
A PM do Rio, em conjunto com policiais cearenses e integrantes dos Ministérios Públicos de Rio de Janeiro e Ceará, transformou a favela em cenário de confronto. O saldo parcial inclui quatro fuzis, três pistolas, celulares e rádios transmissores apreendidos. Mas também inclui o terror cotidiano infligido à população pobre e negra que vive no território, submetida a tiroteios e helicópteros sobrevoando os barracos a baixa altitude — uma rotina que o governo do estado, liderado por Cláudio Castro, insiste em tratar como política de segurança.
Militarização sem freios
Durante a ação, um policial militar foi baleado no pescoço e encaminhado ao Hospital Miguel Couto. Segundo o secretário estadual de Segurança Pública, Victor Santos, o agente está fora de risco. A informação é usada oficialmente como justificativa para manter a operação em andamento, ignorando os relatos de moradores sobre o uso desproporcional da força.
Fontes locais afirmam que os tiroteios começaram ainda de madrugada e seguiram intensos pela manhã, sem aviso prévio ou garantia de evacuação de crianças, idosos ou trabalhadores que precisavam sair para seus compromissos. Para o governo, o território permanece sob controle do crime — e, portanto, passível de intervenções que violam qualquer protocolo mínimo de garantia de direitos.
Rocinha sob ocupação
A Rocinha tem sido alvo frequente das chamadas “operações integradas” entre o governo estadual e forças de outros estados, em especial do Nordeste. A justificativa da vez é a presença de “chefes do crime do Ceará” usando a favela como base estratégica para coordenar ações criminosas à distância. A narrativa, difundida pelo próprio Cláudio Castro em suas redes sociais, visa alimentar a imagem de um Estado “forte” diante da criminalidade — mas omite as consequências brutais para quem vive entre os muros da Rocinha.
“A Rocinha virou laboratório de operações espetaculosas que só servem para justificar repressão e marcar posição política. A inteligência policial é substituída por coreografias militares para as câmeras”, critica um defensor público que atua na região, sob condição de anonimato.
Conivência institucional e ausência de política social
A ausência completa de alternativas sociais para as comunidades, somada à militarização crescente da segurança pública, faz parte de uma engrenagem já conhecida: o Estado se faz presente apenas pela via da bala. O Ministério Público do Rio, por sua vez, raramente questiona a legalidade dessas operações ou exige limites claros no uso da força, corroborando um modelo de ação que historicamente se mostra ineficaz, quando não genocida.
Não é de hoje que especialistas alertam para a expansão das facções interestaduais, mas o foco recorrente em “invasões do Ceará” serve mais à espetacularização da violência do que a um enfrentamento sério do crime. Ao contrário do que é prometido pelas autoridades, o que se vê é a repetição de ações midiáticas que resultam em poucas prisões, nenhum desmantelamento significativo de redes criminosas e prejuízos incalculáveis para a vida cotidiana dos moradores.
Quem lucra com a guerra
O discurso de “guerra às drogas” é funcional para governos como o de Cláudio Castro, que fazem da retórica do medo um trampolim político. Ao mesmo tempo, a lógica da ocupação policial serve ao mercado imobiliário e à gentrificação: uma favela sitiada e estigmatizada vale menos, e pode ser mais facilmente integrada a projetos de “revitalização” para o turismo ou para investidores privados.
Operações como esta também são oportunidades para fortalecer laços com setores conservadores do eleitorado e justificar repasses milionários para a segurança pública sem transparência. Enquanto isso, a Rocinha segue com saneamento precário, escolas mal equipadas e jovens aliciados pelo tráfico — sem que nenhuma política pública efetiva enfrente as causas estruturais da violência.
Crime e Estado caminham juntos
É preciso questionar por que essas ações continuam se repetindo, mesmo com todos os alertas sobre sua ineficácia. Quem realmente comanda o território: os traficantes do Ceará ou os interesses inconfessos de uma política que lucra com a violência?
Enquanto a PM do Rio de Janeiro age como exército de ocupação, as comunidades são mantidas reféns de um projeto falido de segurança pública que troca inteligência por brutalidade e justiça social por opressão. E a sociedade, muitas vezes conivente ou indiferente, assiste de longe, como se a Rocinha não fosse parte da cidade — ou do país.