O Instituto Médico Legal (IML) no Centro do Rio de Janeiro suspendeu todos os atendimentos de rotina nesta quarta-feira (29) para se dedicar exclusivamente à identificação das vítimas da megaoperação policial nos complexos da Penha e do Alemão, considerada a mais letal da história do estado e do país.
A medida foi tomada após a chegada de dezenas de corpos — a maioria levada por moradores da própria comunidade — ao longo da madrugada. O balanço inicial divulgado pela Polícia Militar registrava 64 mortos, mas, segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o número já chega a 132, incluindo quatro agentes de segurança.
Atendimento emergencial e perícia exclusiva
O reconhecimento dos corpos ocorre em um anexo do prédio do Detran, ao lado do IML, onde familiares aguardam desde as primeiras horas da manhã. O acesso ao edifício principal foi restringido a peritos, policiais civis e promotores do Ministério Público (MPRJ), que acompanharão os exames e a coleta de material genético.
De acordo com a Polícia Civil, foi montada uma força-tarefa para acelerar a identificação das vítimas e cruzar os dados com registros de desaparecidos. Casos que não tenham relação com a operação foram transferidos para o IML de Niterói, na Região Metropolitana.
O MPRJ confirmou que o IML do Centro fará perícia independente a pedido do órgão, que também abriu procedimento para apurar as circunstâncias das mortes e possíveis execuções extrajudiciais.
Corpos levados por moradores e caos na Penha
Durante a madrugada, a Praça São Lucas, na Estrada José Rucas, se transformou em ponto de encontro de familiares e ativistas. Moradores relataram que pelo menos 64 corpos foram retirados de áreas de mata e levados em carros e caminhonetes particulares até o local — muitos cobertos por lençóis ou lonas plásticas.
As imagens chocantes circularam nas redes sociais e provocaram reação imediata de entidades civis. A Anistia Internacional Brasil afirmou em nota que “a dimensão da tragédia exige investigação urgente e independente, pois há fortes indícios de execuções e ocultação de corpos”.
Defensoria e DPU criticam violência de Estado
A Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria do Rio de Janeiro divulgaram notas conjuntas criticando duramente a operação, batizada de “Operação Contenção”.
“Ações estatais de segurança pública não podem resultar em execuções sumárias, desaparecimentos ou violações de direitos humanos, sobretudo em comunidades historicamente marcadas por desigualdade e exclusão institucional”, afirmou a DPU.
As instituições lembraram que o Supremo Tribunal Federal (STF) já determinou a adoção de medidas para reduzir a letalidade policial no Rio, homologando parcialmente o plano estadual de segurança apresentado pelo próprio governo fluminense em abril de 2025.
“O combate ao crime deve ocorrer dentro dos limites da legalidade. O Estado não pode agir como o criminoso que diz combater”, completou o texto.
Cláudio Castro admite excesso, mas mantém discurso de guerra
O governador Cláudio Castro (PL) reconheceu que a operação pode ter “extrapolado os limites legais”, mas defendeu o caráter militar da ação.
“Tem muito pouco a ver com segurança pública. Esta é uma operação de defesa. Estamos em uma guerra que o Estado não deveria enfrentar sozinho. Talvez seja o caso de apoio das Forças Armadas”, declarou Castro em entrevista.
A fala reforçou o discurso de guerra interna que tem marcado a gestão do governador, criticada por transformar comunidades pobres em zonas de confronto contínuo, ignorando decisões do STF que limitam operações letais em áreas densamente povoadas.
Analistas e entidades de direitos humanos afirmam que a retórica de Castro legitima a violência institucional e “naturaliza a barbárie”, ao tratar cidadãos de favelas como inimigos em um campo de batalha.
Operação Contenção: 2.500 agentes e 93 fuzis apreendidos
Segundo a Polícia Civil, a megaoperação envolveu 2.500 agentes e resultou na apreensão de 93 fuzis, 200 kg de drogas e na prisão de 81 pessoas, entre elas Thiago do Nascimento Mendes, o Belão, apontado como operador financeiro do Comando Vermelho.
O principal alvo, Edgar Alves de Andrade, o Doca, considerado chefe da facção nos complexos da Penha e do Alemão, segue foragido.
Apesar do aparato inédito, o saldo da ação é trágico e reforça a contradição das políticas de segurança baseadas no confronto: alta letalidade e baixo resultado prático.
Ecos do Carandiru e a repetição da tragédia
Mais de 30 anos após o massacre do Carandiru, o Brasil assiste à repetição do mesmo padrão de violência estatal — agora nas ruas e vielas de uma das maiores metrópoles do país.
Enquanto o governo do Rio tenta enquadrar a operação como “vitória sobre o crime”, o saldo real é o maior número de mortos em uma ação policial na história do Brasil.
A tragédia reacende uma pergunta antiga, que segue sem resposta:
quantos corpos mais o Estado precisará empilhar até entender que segurança pública não se constrói com sangue?


