Brasília, 31 de maio de 2025 – Em mais um movimento que mistura cinismo legislativo com autoritarismo digital, a Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que impõe às plataformas de redes sociais a obrigação de submeter ao Congresso, em até 24 horas, qualquer pedido de remoção de contas de políticos. A proposta escandalosa, relatada pelo deputado bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO) e baseada em um texto inicial do também bolsonarista Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), escancara o projeto de impunidade institucional que parte da extrema-direita tenta consolidar no Brasil.
Censura institucionalizada com verniz legal
A proposta vai além do escopo inicial, que se restringia aos parlamentares federais, para abranger todos os ocupantes de cargos eletivos no Executivo e no Legislativo, incluindo os níveis estadual, distrital e municipal. Ou seja, prefeitos, vereadores, governadores e deputados estaduais também seriam blindados contra moderação digital — uma carta branca para a desinformação, o discurso de ódio e a propaganda criminosa sob o pretexto da “liberdade de expressão”.
Gustavo Gayer, que acumula um histórico de ataques ao Supremo Tribunal Federal e à imprensa, tenta vender o projeto como uma salvaguarda à democracia: “A proposta não é um salvo-conduto para ilegalidades, mas uma proteção ao direito de manifestação daqueles que foram escolhidos pelo voto popular”. A frase, digna de manual de manipulação discursiva, ignora que nenhum direito é absoluto — e que o mandato popular não autoriza a violação da lei, muito menos a disseminação de mentiras.
Judiciário sob ameaça indireta
O projeto ainda determina que ordens judiciais de remoção de perfis parlamentares sejam tratadas como medidas cautelares “excepcionais”. Com isso, o texto afronta diretamente a autoridade do Poder Judiciário, abrindo caminho para a desobediência civil institucionalizada — um traço clássico de regimes autoritários. Se aprovado, o projeto passará a integrar o Marco Civil da Internet, desmontando um dos poucos arcabouços legais que ainda garantem certa racionalidade no debate digital brasileiro.
Blindagem e impunidade como estratégia política
Especialistas e entidades civis alertam que a medida representa um claro retrocesso. Em nota, a Coalizão Direitos na Rede, composta por mais de 50 organizações da sociedade civil, afirmou que a proposta “abre um perigoso precedente de ingerência política na moderação de conteúdo, enfraquecendo o combate à desinformação e incentivando práticas abusivas por parte de agentes públicos”.
A tentativa de transferir ao Congresso Nacional o poder de veto sobre decisões técnicas das plataformas soa como um delírio autocrático, especialmente vindo de uma base parlamentar alinhada ao bolsonarismo, que tem no uso desvirtuado das redes sociais um de seus principais instrumentos de ataque à democracia.
Ofensiva bolsonarista no Congresso
O projeto chega em um momento de recrudescimento da ofensiva bolsonarista dentro do Legislativo. Na prática, o grupo tenta blindar figuras notoriamente investigadas por práticas antidemocráticas nas redes — entre eles, o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, atualmente inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral e alvo de investigações por tentativa de golpe de Estado.
Não se trata de uma simples disputa sobre algoritmos ou liberdade de opinião. A proposta insere-se numa estratégia mais ampla de controle do ecossistema digital por setores que instrumentalizam as redes para promover desinformação, ataques a opositores e mobilizações golpistas, como se viu no 8 de Janeiro de 2023.
Trâmite e cenário político
Antes de ir ao Senado, o texto ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), em caráter conclusivo. Caso avance, caberá ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir se sanciona ou veta a medida — uma encruzilhada política que exigirá firmeza institucional diante de uma proposta que fere a lógica republicana.
Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal deve retomar na próxima semana o julgamento sobre a responsabilidade de plataformas digitais na moderação de conteúdos, num contexto em que a judicialização do ambiente digital se tornou inevitável diante da leniência — ou cumplicidade — do Congresso com as práticas abusivas online.
A luta pela democracia digital no Brasil
A tentativa de transformar o Congresso Nacional em um tribunal censor a serviço da autopreservação política é uma ameaça real à democracia digital. A liberdade de expressão — tão usada como escudo pelos propagadores do ódio — não pode ser confundida com licença para destruir o tecido democrático a partir de dentro.
No momento em que o Brasil busca reconstruir suas instituições após o caos bolsonarista, permitir que o Parlamento assuma o papel de moderação das redes sociais é entregar o galinheiro às raposas. Cabe à sociedade civil, à imprensa livre e aos setores comprometidos com a democracia resistir a mais essa manobra — e nomear o que ela de fato é: um projeto de impunidade e censura institucionalizada travestido de defesa da liberdade.