Zagreb, Croácia – O corpo mumificado de Hedviga Golik, uma enfermeira nascida em 1924, foi descoberto em maio de 2008 dentro de seu minúsculo apartamento em Medveščak, bairro central de Zagreb. A morte, no entanto, havia ocorrido quatro décadas antes – com a televisão ainda ligada no momento da descoberta. O caso, além do choque imediato, expôs a face mais brutal do isolamento social em zonas urbanas, revelando como a solidão pode se prolongar ao ponto de apagar uma existência inteira da memória coletiva.
Uma mulher esquecida no coração da cidade
Hedviga Golik vivia sozinha no sótão de um prédio de quatro andares, ocupando apenas 18 metros quadrados. Seus hábitos excêntricos e reclusos afastaram os vizinhos. Sem contato regular com o mundo exterior, ela desenvolveu métodos para evitar interações: enviava listas de compras por cordas a partir da janela, tentando manter a autonomia sem jamais sair de casa.
Na época da descoberta, a polícia foi chamada após uma tentativa de reaver a posse do imóvel, que estava registrado em seu nome. Quando arrombaram a porta, encontraram Hedviga sentada em uma poltrona diante da TV – ainda ligada – já completamente mumificada.
Isolamento como sentença de invisibilidade
A TV ligada por 42 anos se tornou símbolo macabro de um mundo que seguiu em frente enquanto a moradora permanecia esquecida. Hedviga não havia sido procurada por familiares, nem pelas autoridades, nem por serviços sociais. A ausência de sinais de movimentação levou os moradores a presumirem que o imóvel estivesse abandonado – ou que ela tivesse se mudado silenciosamente.
A história revela a ineficácia dos sistemas de monitoramento e assistência social em muitas cidades europeias durante a segunda metade do século 20. Embora Zagreb seja uma capital moderna, com rede de saúde pública e políticas habitacionais, o caso Golik expõe como pessoas solitárias podem desaparecer mesmo sob os olhos do Estado.
A normalização do abandono urbano
Casos como o de Hedviga Golik não são isolados. Em 2001, o corpo de Joyce Carol Vincent, em Londres, foi encontrado três anos após sua morte, com luzes acesas, presentes de Natal ainda embalados e a televisão ligada. O fenômeno se tornou tão recorrente que estudiosos o classificam como “morte urbana invisível”.
O padrão é semelhante: mulheres solitárias, muitas vezes idosas, sem laços familiares próximos, vivendo em bairros centrais mas desconectadas de qualquer rede de proteção comunitária. A tendência aponta para um colapso dos vínculos sociais e uma erosão da empatia coletiva em centros urbanos – onde o anonimato e a pressa substituem a solidariedade.
Indiferença institucional e falência comunitária
A morte silenciosa de Hedviga Golik coloca em xeque a função de síndicos, vizinhos, serviços postais, hospitais, prefeituras e até instituições bancárias. Como foi possível que ninguém notasse a ausência da moradora por mais de quatro décadas?
Mesmo que o apartamento fosse pequeno e mal frequentado, a existência de contas, impostos, energia elétrica e registro civil deveria ter acionado algum alarme administrativo. O fato de a televisão permanecer ligada por 42 anos indica que a eletricidade não foi cortada, o que sugere falhas múltiplas no rastreamento de longos períodos de inatividade.
O corpo como testemunho
A figura mumificada diante da TV cria uma imagem poderosa e perturbadora: um corpo testemunhando a passagem do tempo, ignorado por todos. Em um mundo hiperconectado, onde dados pessoais circulam em tempo real, é paradoxal que uma pessoa possa simplesmente desaparecer da vida pública sem levantar nenhuma suspeita.
A morte de Hedviga Golik também é um reflexo da fragilidade humana diante de um sistema urbano que premia a produtividade e ignora a solidão. A tragédia da enfermeira croata não é apenas um episódio macabro – é um sinal de alerta global.
O Carioca Esclarece
Como o corpo pôde permanecer intacto por tanto tempo?
O fenômeno de mumificação natural pode ocorrer em ambientes secos e sem ventilação, como o sótão onde Hedviga vivia. A ausência de umidade, a baixa incidência de luz solar direta e o ambiente lacrado colaboraram para a conservação do corpo, surpreendendo até os peritos locais.
O que a descoberta revela sobre o funcionamento das instituições urbanas?
O caso evidencia uma falência institucional sistêmica: registros civis não foram atualizados, contas seguiram ativas e nenhum órgão identificou a inatividade do imóvel por mais de 40 anos. Isso expõe uma lacuna grave no monitoramento de populações vulneráveis.
Esse tipo de caso ainda ocorre hoje?
Sim. Apesar da digitalização de cadastros e do avanço de políticas sociais, casos de mortes não descobertas por longos períodos ainda surgem em metrópoles como Tóquio, Paris e São Paulo. A tecnologia não substitui o papel das redes humanas – vizinhança, solidariedade e contato direto são insubstituíveis.